Entre a orgia e a abstinência
Embora seja
reconhecido como a maior festa popular do mundo, o Carnaval Brasileiro não
surgiu entre nós. Os historiadores, quase unanimemente, o ligam aos festejos
pagãos da Antiguidade, realizados principalmente no Egito, na Grécia e, um
pouco mais tarde, em Roma, em culto aos deuses, agradecendo e celebrando as
fartas colheitas e a chegada da primavera. Nestas festas, segundo escritores
não-cristãos, predominavam as bebedeiras, as orgias e a prática sexual,
realizadas sem nenhum comedimento, em honra a Ísis, a Osíris, a Dionísio, a
Afrodite, a Baco, a Saturno, a Júpiter, a Pã, dependendo do local. Todos eles
associados, de um modo ou de outro, à fertilidade, à orgia, ao vinho, ao
excesso, à extravagância, à zombaria e à loucura.
Na Era Cristã, com a
hegemonia religiosa do Catolicismo, a Igreja entendeu que deveria intervir para
coibir os abusos que eram cometidos nos festejos. Apesar de alguns segmentos da
Igreja tentar, não conseguiram abolir a festa. Entretanto, a Igreja exerceu
forte influência sobre o Carnaval, vinculando-o ao Calendário Litúrgico, ao
determinar que sua realização antecedesse ao período de penitência chamado
Quaresma (período de cerca de 47 dias de preparação para a Páscoa Católica). A
ligação é tão estreita que alguns defendem que o termo Carnaval vem do latim “carne, vale!” (adeus, carne!), numa
referência ao tempo de excesso, exagero e inversão de valores para se
“despedir” da carne, permitido pela Igreja, para entrar no período de
introspecção, oração, abstinência, jejum e penitência da Quaresma. Outros, no
entanto, advogam que o termo vem da expressão “carrum navallis”, originada na prática do desfile de carros em
formato de navios, levando homens e mulheres nus, como parte dos rituais de
celebração e veneração ao deus Saturno, chamado “Saturnais”.
De qualquer forma, o
Carnaval e a Quaresma, primeiramente, são símbolos significativos da tendência
dicotômica de se querer separar corpo e espírito no exercício da relação com
Deus, com os valores éticos e morais, consigo mesmo e com as outras pessoas. Em
segundo lugar, sob o ponto de vista teológico, ambos os períodos confundem o
sentido de “carne” com o corpo, impondo a este o status de mal que, por causa
disso, tal como nas filosofias epicurista e estoicista, respectivamente, deve
ser entregue totalmente ao prazer ou ter seus desejos e apetites reprimidos.
Muitos advogam que, em nome da alegria, a transgressão, o excesso, o exagero, a
desordem devem ser, não apenas permitidos, como também estimulados. Enquanto
outros defendem que, em nome da santidade, o prazer, o apetite, a celebração,
devem ser evitados e, em alguns casos, banidos. Deste modo, o Carnaval licencia
a orgia, enquanto a Quaresma reprime o prazer. Diante disso, nada mais
apropriado do que a marchinha “Ó Abre
Alas” de Chiquinha Gonzaga, aceita como a primeira música carnavalesca do
Brasil, para sugerir a necessária abertura à temperança. Num contexto marcado
pelo desequilíbrio, seja pelo excesso, seja pela privação, tais alas precisam
abrir espaço para transitar o equilíbrio como proposta saudável de estilo de
vida.
Em nossa relação com
Deus, conosco mesmos e com os outros, nossa vida não é, ou pelo menos não
deveria ser, departamentalizada de modo a, em um determinado momento,
envolvermos nosso corpo e, em outro, o nosso espírito, separadamente. Embora
muitas vezes separemos o corpo do espírito com fins didáticos, isso não precisa
acontecer no que diz respeito à nossa experiência de vida. Porque no único
momento em que a vida admite a separação entre o espírito e o corpo
estabelece-se a morte. Vida é a existência do ser de maneira integral em suas
relações com Deus e com o universo de modo indivisível.
Teologicamente falando, a carne (sarx, em grego) que deve ser combatida e mortificada (Romanos 8.13),
não é o corpo, mas sim a natureza pecaminosa, que inclina o ser humano para o
mal, cujas obras são alistadas de maneira exemplar por Paulo, em sua Carta aos Gálatas:
“Porque as obras da carne são manifestas, as quais são:
adultério, prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçaria, inimizades,
porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, invejas, homicídios,
bebedices, glutonarias, e coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos
declaro, como já antes vos disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o
reino de Deus.” (Gálatas 5.19-21).
O corpo é bom! E somos convocados a usá-lo de modo
que glorifique a Deus não somente na esfera das atividades tidas como
religiosas, mas em todos os aspectos componentes da vida, desde as ações mais
corriqueiras e naturais até aquelas consideradas especiais ou que exigem maior
elaboração:
"Portanto, quer comais quer bebais, ou façais outra
qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus." (I Coríntios 10.31).
Assim sendo, as faculdades físicas, psíquicas e
espirituais devem se expressar harmonicamente, de um modo saudável, em plena
consonância com o propósito de Deus, o que não inclui as posturas libertinas e
nem mesmo as ascetas. Não conseguiremos vida saudável sob o ponto de vista
holístico, nos entregando desenfreadamente ao prazer pelo prazer, nem mesmo
impondo a nós mesmos privação e abstinência de coisas saudáveis e necessárias à
vida, como o alimento e a vida social. O prazer e a santidade não são
antagônicos e, portanto, não precisam estar em pólos opostos, como o demonstra
o apóstolo:
“Porque o reino de Deus não é comida nem bebida,
mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo. Porque quem nisto serve a
Cristo agradável é a Deus e aceito aos homens. Sigamos, pois, as coisas que
servem para a paz e para a edificação de uns para com os outros. (Romanos
14.17-19).
É preciso
também neste tema seguir o exemplo do Mestre. Ele soube conciliar suas
necessidades físicas, psíquicas e espirituais, vivendo naturalmente,
apresentando um perfil de alegria, muitas vezes festivo, intensamente bem
relacionado socialmente sem, contudo, se entregar à orgia ou à pecaminosidade
de qualquer natureza e sem comprometer sua íntima relação com o Pai. Enquanto
vivia com naturalidade, comendo, bebendo, convivendo, festejando a vida,
cumpria sua missão fielmente, de um modo possível somente a um homem cuja
espiritualidade caracterizava-se por indiscutível profundidade. Convivia com
pecadores, mas não se deixava levar pelo pecado (João 8.46). Foi injustamente
chamado de “comilão e bebedor de vinho” pelos fariseus, que também o acusaram,
sem a devida consciência da justiça de suas palavras neste caso, de ser “amigo
de pecadores e publicanos”, por frequentemente se aproximar dos maiores marginalizados
do seu tempo (Lucas 7.34; 19.7). A respeito deste homem dos banquetes e da
oração, Deus disse: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mateus
3.17).
A vida intensa e plena de alegria, ou ainda momentos
de euforia e de celebração, não devem ser confundidos com bacanais, onde tudo é
permitido. Aprofundamento da relação com Deus, embora possa incluir momentos de
recolhimento e de abstinência, não deve ser entendido como incompatível com a
alegria. Além disso, tais momentos devem representar uma escolha pessoal, de
fórum íntimo, para se dedicar mais tempo à oração, ao estudo da Palavra de Deus
e à reflexão, mas em nenhuma hipótese deve-se conferir-lhes um caráter
sacramental ou purgativo. Não nos esqueçamos de que é o sangue de Jesus que nos
purifica de todo pecado e não nossos exercícios religiosos (I João 1.7). Nosso
corpo é templo do Espírito Santo e, portanto, não deve ser instrumento do
pecado, nem também alvo de auto-flagelamento. Abram alas, festejo carnal e
sacramentalismo religioso, para a alegria da autêntica vida com Cristo passar!
*Graduado em
Teologia pelo Seminário Teológico Batista da Bahia (1993), graduando em
Pedagogia pela UFBA - Universidade Federal da Bahia, pastor da Igreja Batista
do Costa Azul, em Salvador-BA.
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, João Ferreira de, trad. A
Bíblia Sagrada. Corrigida, fiel ao texto original. Versão digital 6.7,
programada por Marcelo Ribeiro de Oliveira, 2010 www.blasterbit.com
ALMEIDA, João Ferreira de, trad. A
Bíblia Sagrada. Versão revisada, de acordo com os melhores textos em
hebraico e grego. Rio de Janeiro. JUERP: 2002.